sábado, junho 24, 2006

Entrevista Alan Moore - Parte 03


O trivial variado, V de Vingança e os ídolos

Liga Extraordinária


Você parece gostar de misturar personagens de fábulas, da literatura ou mesmo nomes históricos em sua obra em quadrinhos. Na Liga Extraordinária, Do Inferno, Monstro do Pântano... Por que mexer com material de outros autores? Suponho que teria de dar a mesma resposta dos alpinistas que escalam o Everest quando questionados por que eles fazem isso: "Bem, é porque o Everest está lá". É por aí. Os personagens "estão lá". Estamos num ponto muito especial da nossa cultura. Sabemos muito sobre o passado. Ele está mais acessível do que nunca. Há muita informação. Neste começo do século 21, é possível olhar pra trás e encarar esse enorme tesouro cultural e ter essas ótimas idéias em cima de coisas, fatos, personagens que tinham importância, significado e vida no passado, mas que ainda podem ser úteis no presente. E o mais instigante: é possível utilizar elementos desse material que não foram tocados anos atrás.

Acrescentar ou melhorar as idéias de outros autores? Mais do que isso. Vou te dar um exemplo. Você mencionou a Liga Extraordinária. Lost Girls também pertence a esse mundo de onde a Liga surgiu. Veio até antes da Liga. A idéia é usar personagens de outras pessoas, ainda que a ficção tenha vindo inteiramente da minha cabeça. A primeira vez em que encarei esse impulso de dar nova vida aos personagens de outros foi com uma idéia de pornografia... Depois, percebi que era possível contar uma boa história de aventura. E foi essa mudança que originou a Liga Extraordinária.

Mas de onde veio o impulso de recorrer a personagens clássicos? Isso é antigo. Essa idéia me acompanha faz muito tempo. Na verdade, esse recurso existe faz bastante tempo. Você deve lembrar na época em que Alice no País das Maravilhas foi escrito. As leis de direitos autorais eram bem mais frouxas que as de hoje. Um ou dois escritores escreveram continuações da história sem a permissão de Lewis Carroll. Mas era comum. Os próprios autores costumavam tomar emprestado alguns personagens de que gostavam. Exemplo de Edgar Allan Poe. Em o Relato de Arthur Gordon Pym ele descreve um herói que sai de Nantucket, alcança o Pólo Sul e desaparece em circunstâncias misteriosas. E aí Julio Verne lê a história de Poe, gosta tanto dela que decide escrever uma seqüência chamada A Esfinge dos Gelos... Ou basta pensar em Sherlock Holmes. Ele já apareceu numa série de livros de crimes. Aliás, Holmes encontra em sua carreira uma série de bandidos franceses... Isso é recorrente. Por que franceses? Dá a impressão de que alguns escritores tenham utilizado esse expediente deliberadamente, numa tentativa de conectar suas obras. Eu encaro esse ato de tomar emprestado um personagem como uma espécie de homenagem, a mais alta reverência possível a um autor. Eu certamente não quero pensar que distorci esses personagens, muito menos que prestei um desserviço à obra original. Essa preocupação esteve muito presente enquanto escrevia Lost Girls, porque a história junta essas personagens que são adoradas pelas crianças e as mostra mulheres feitas, com identidades sexuais.

Você fica com isso na cabeça enquanto escreve? Nos limites dos personagens? É um exercício de tentar adivinhar o que o criador aprovaria? Olha, às vezes a coisa já está lá. Pensando nessa linha de raciocínio, tome o final da história do Peter Pan. É revelado nesse pedaço que Wendy agora é uma mulher, que ela cresceu, está casada, tem filhos... Ela até fecha a janela do quarto dos filhos, porque não quer mais as visitas de Peter Pan, não quer que Peter leve suas crianças para os caminhos desviantes que ele a levou. Esse trecho do livro, esse final, sugere que a vida dessas garotas, como Wendy e Alice, não terminam com o fim de suas aventuras na infância. Elas deixaram isso pra trás. Elas cresceram!, o que, presumivelmente, deve acontecer a todas as crianças, até as da ficção. Foi isso o que tentei com todos esses personagens: ficar o mais perto possível das intenções iniciais do autor.

Quem são os teus escritores preferidos? Há uma porção deles que ainda está viva. O meu favorito no momento é Ian Sinclair, um romancista inglês que eu acredito ser provavelmente um dos melhores dos últimos cem anos. Tenho muita admiração por autores mais desconhecidos. Muita admiração pelos escritores do realismo mágico sul-americano. Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs me encantam. Gosto de escritores desconhecidos dos anos 1890, gosto de poetas... Mas tenho uma especial admiração por autores que ninguém menciona, pessoas que não são celebradas e que fizeram coisas maravilhosas e que ficaram presas nas fendas da história...

E nos quadrinhos? Quem são as tuas referências? Will Eisner, sem dúvida. Harvey Kurtzman, Lynd Ward, que fez a primeira obra que pôde ser chamada de graphic novel. Há um bocado de bons autores por aí, mas eu deixei de ler gibis, não estou mais em contato. Por isso, a maioria dos meus favoritos está morta. A melhor coisa que está sendo feita nos quadrinhos hoje em dia é esse material mais documental, caras como Joe Sacco. Este parece ser um território muito promissor para as HQs. A maioria dos quadrinhos modernos é esteticamente muito bonita, muito inteligente, sofisticada, mas o conteúdo do gibi não me atrai. Você tem todo esse monte de histórias sobre o quão a vida é vazia, e essas são histórias de gente que vive no mais rico, no mais confortável país do mundo! Não quero negar o direito de eles sofrerem ou de expressarem suas opiniões; só digo que não é algo que me deixa muito interessado, não.

V de Vingança foi criada no decorrer dos anos 80, Margaret Thatcher a pleno vapor. Há um texto que escreveu para a introdução de um encadernado da série em que diz temer pelo futuro de seu país: "A Inglaterra está se tornando uma terra hostil e fria. Penso em sair daqui". Por que decidiu ficar? Olha, a razão de não ter deixado a Inglaterra foi porque na época em que escrevi esse editorial eu passava por uma situação muito diferente, muito específica. O caldo andava grosso no país. Estava vivendo com minha esposa Phyllis e nossa namorada Debbie, numa espécie de ¿relacionamento experimental¿... Com a pressão de ter sido colocado no rol das minorias sexuais por Margaret Thatcher, pelos membros conservadores do Parlamento e pela polícia, achei que talvez fosse prudente mudar para outro país pela segurança da minha família. Acontece que imediatamente depois de ter escrito aquela introdução, minha família se dissolveu. E daí que a partir de então, permaneci vivendo por minha conta em Northampton, até conhecer Melinda.

Hoje fica um tanto difícil imaginar as coisas desse jeito na Inglaterra. Isso realmente lembra o estado descrito em V de Vingança. Curioso. Deixando de ser um pária, "sem família", você não precisava mais partir? É. Foi isso. O clima era esse. Como minha filha e minhas ex-companheiras estavam de mudança para Liverpool, e o único motivo para que eu pensasse em me mudar de Northampton era para garantir a segurança delas, a situação toda mudou. Foi por isso que fiquei. Por isso não cumpri o que escrevi naquele texto. Estava muito feliz aqui, onde morava e moro.

E o que mudou desde então? O senhor está agora sob Tony Blair. Acha que os anos Blair merecem algum tipo de V de Vingança? Tony Blair... Hã... Afe...! Eu devo admitir que nunca acreditei que seria possível odiar um político mais do que odiei Margaret Thatcher. Mas olhando em retrospecto, Margaret jamais disse ser qualquer coisa que ela realmente não fosse: ela era exatamente daquele jeito que a tornou conhecida, essa coisa insanamente direitista... Mas ela era dessa maneira. E você sabia disso. Tony Blair se declara parte do Partido Trabalhista... Veja, meus pais, que eram da classe trabalhadora, sempre votaram no Partido Trabalhista. Eles acreditavam que este era o partido das pessoas comuns, da gente simples, enfim, dos trabalhadores. E Tony Blair levou o partido para uma direita mais acentuada do que a dos conservadores de Margaret Thatcher...

... tanto assim? Não é a imagem que ele apregoa. A coisa da terceira via... Exato. Aí está. A maioria dos políticos do ocidente, particularmente os ingleses e norte-americanos, é formada por um pessoal que eu não tenho certeza, ninguém tem muita certeza de que diabos de trabalho eles estão fazendo. O que fazem? O que propõem? Não estou certo de que maneira estão nos ajudando, mas tenho certeza de que eles não têm absolutamente nenhum talento para o trabalho que estão fazendo. Não parecem conseguir atingir coisa alguma. Se eu, ou você, ou qualquer um estivesse sendo julgado, e agisse do jeito com que os nossos líderes políticos atuam, eu diria que nós ou esse alguém estaria fora do emprego num instante, sabe? Se eu fosse um escritor tão chumbrega como Tony Blair e George Bush são como políticos, ninguém me contrataria, ninguém me leria. Ficaria bastante óbvio que eu não teria talento algum. Se eu mergulhasse nessa lambança de desastres, se fosse ruim como eles são, aposto que não estaria nem dando esta entrevista agora. A coisa é que nossos líderes políticos são mantidos e tratados num patamar diferente. Eles podem mentir, podem se comportar abominavelmente, e eles podem ser reeleitos... Então sim, eu particularmente tenho um desgosto danado por Tony Blair.

Mas não a ponto de expressar isso em alguma HQ com o mesmo impacto de V de Vingança? Olha, se eu quisesse expressar meu asco por Blair ou Bush, eu provavelmente o faria em termos diretos. Existe uma revista alternativa americana chamada Arthur que fez uma edição inteiramente baseada na guerra do Iraque. Eles me pediram para que contribuísse com algo. Criei seis páginas em que fui capaz de expressar precisamente, concisamente, claramente tudo o que sinto a respeito dessa patota canalha e meu horror pelo que estão fazendo com o planeta.

Não optaria por um herói de máscara para mostrar isso... Não. Hoje em dia eu provavelmente iria por um tratamento direto em vez de mascarar, bolar uma nova realidade, vestir o tema numa aventura de herói, como em V de Vingança. V foi um formato perfeitamente decente para aquela época. Mas os anos 80 foram consideravelmente mais simples do que este começo de século. O que era apropriado na época, não o é agora. Esta é mais uma das razões por que não quero ver o filme [de V de Vingança]. Me parece que eles [Hollywood] estão pegando minha solução artística para os problemas dos anos 80 e aplicando isso na agenda neoconservadora de Bush. Não é mais uma fórmula apropriada e nem faz sentido. Aquilo foi ontem, isto é hoje. Tempos diferentes demandam soluções diferentes.

Fonte: Revista Trip


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