sábado, junho 24, 2006

Entrevista Alan Moore - Parte 01


OPUS: Moore comenta suas principais obras

Alan Moore


Quero passar em revista algumas de suas obras publicadas no Brasil.
Top Ten: Foi muito prazerosa, divertida. Uma tentativa de fazer um grupo de super-heróis que funcionasse do mesmo jeito que os policiais daqueles programas de TV americanos. Você tem um grande elenco de personagens. Ainda assim, tem que ser capaz de desenvolver todos e contar uma história interessante. Acho que funcionou muito bem. Top Ten é provavelmente uma de minhas últimas incursões em quadrinhos de super-heróis. Gene Ha fez um trabalho estupendo. O problema é que Top Ten está entre as HQs que não me pertencem mais, com a compra da ABC pela DC Comics. Portanto, embora eu tenha apreciado muito tudo o que fiz para a ABC, eu tendo a não pensar muito mais nesse gibi. Foi bom enquanto durou: um esplêndido título de super-heróis, sofisticado e engraçado, com uma arte maravilhosa, mas é algo que mora no passado. Estou olhando para o futuro...

Tom Strong: De novo. Tom Strong está na mesma categoria: uma tentativa de recriar alguns dos antigos heróis populares que têm influência nos primeiros super-heróis americanos, como Tarzan e Doc Savage. A tentativa foi de cozer tudo isso numa fórmula, num molde de super-herói que pudesse ter existido no passado - antes do Super-Homem ter sido criado em 1938. É... Tom Strong. Nós temos uma porção de influências misturadas aqui: temos Tintin, nacos de Capitão Marvel, um punhado de variados ingredientes do pop que estavam à mesa para ser brincados. E sem dizer que Chris Sprouse fez um trabalho tremendo nos desenhos. Mas é um título que faz parte daquela leva de Top Ten, dessa máquina de negócios em quadrinhos que larguei mão...

A Piada Mortal. Ao lado de Asilo Arkham, de Grant Morrison e Dave McKean, redefiniu a relação entre o Batman e o Coringa: A Piada Mortal... Esse foi um gibi que me incomoda um pouco. Embora tenha uma arte adorável nunca me fez sentir que havia uma história boa de verdade por trás. Quer dizer, dentre essas histórias que não me pertencem mais e que já não me dizem mais nada, acho que Piada Mortal tem um enredo porco, sujo. A violência que existe ali não me parece hoje servir para nenhum motivo além de chocar valores. Eu não acho que seja sobre algo interessante... Veja, V de Vingança tratava do princípio da liberdade. Watchmen, tratava do poder. Piada Mortal é apenas sobre o Batman e o Coringa, dois personagens que você jamais encontrará na vida real, nunca verá alguém que os lembre, que tenha algo deles. Essa história não tem aplicação alguma para a vida dos leitores. Pelo contrário. Ela conta apenas com alguns truques que usei para chocar. Não gosto do meu trabalho nessa HQ, apesar de inegavelmente Brian Bolland ter feito um trabalho maravilhoso na arte.

Você escreveu algumas das histórias mais elogiadas do Superman. Gosta delas? Humm... Eu me diverti enquanto as fiz. A coisa é que a DC Comics nunca demonstrou qualquer respeito pelo Superman. Cara, eu fiquei cansado. Todos esses personagens foram roubados. Batman, Superman, cada personagem que pertence à DC ou à Marvel foi roubado, surrupiado de pessoas que, em geral, foram para o túmulo enganadas, traídas e empobrecidas. Eu jamais, jamais consideraria trabalhar com esses personagens novamente porque as únicas pessoas beneficiadas com isso seriam as que fazem parte desse séqüito da Warner Bros. Não há vantagem. Se eu fizer uma boa história do Superman, não haverá vantagem... Eles apenas venderão mais gibis baseados em personagens que roubaram. Não. Não faria. Quer dizer, dei o meu melhor nessas histórias, e foi ótimo trabalhar com [o editor] Julius Schwarz e [o desenhista] Curt Swan... Mas, de novo, pra te falar a verdade, é um material em que não penso mais, sabe?

Certo. Watchmen, seu trabalho mais conhecido. Humm... Aqui é complicado. Watchmen foi o trabalho mais triste, mais difícil que me foi tirado porque ele foi um dos melhores. Uma obra maravilhosa, mas está nessa lista de criações minhas roubadas por essa empresa odiosa... Lamento muito. Acredito que Dave Gibbons e eu fizemos um trabalho fantástico. Fiquei realmente orgulhoso desse título. Foi um jeito totalmente diferente de contar uma história sobre super-heróis. O problema é que Watchmen impulsionou o surgimento de um terrível monte de baboseiras, de narrativas de super-heróis sombrias, amargas, pretensiosas. Uma capa negra sobre o mercado. Jamais foi a minha intenção. Surgiu uma quantidade horrorosa de títulos na esteira de Watchmen que eram simplesmente violentos e cruéis. Uma leitura dos super-heróis que não dava a mínima para o material inteligente que estávamos aplicando na série, para o jeito de contar a história, para a sofisticação da narrativa e sem perceber a nossa visão do mundo à época. Então, por mais que eu goste de Watchmen, ela provavelmente teve um efeito negativo enorme nos quadrinhos americanos de super-heróis.

O curioso é que muita gente diz que Watchmen salvou esse mercado. A série teria alçado as HQs a um patamar mais realista, no limite em que realismo e super-heróis, juntos numa frase, façam sentido. Foi tão negativo assim? Por quê? O negócio é que as pessoas viram que aquilo vendeu bem. Infelizmente, a vasta maioria dos escritores que trabalham nos quadrinhos americanos não é realmente boa. E acredito que um bocado deles pensou que Watchmen era algo que parecia tão moderno... Algo que poderia, e de fato o fez, criar uma moda: "Oh, ele está lidando com mascarados! Mas, nossa senhora!, ele os está colocando de um jeito sombrio e amargo". O triste é que eu sabia que eles não seriam capazes de reproduzir as coisas que nós estávamos fazendo em Watchmen. Apenas copiaram as coisas que conseguiram - a atmosfera superviolenta, depressiva que está no original. Mas se havia esse clima opressivo, sombrio em alguma edição, olha só que surpresa: a gente fazia a seguinte com algo surpreendentemente agradável ou iluminado. Nós tentamos equilibrar. Não era apenas ficar apertando a tecla preta do piano de novo, de novo e de novo... Estávamos tentando botar referências a uma cultura ampla. E o que isso fez? Provocou nas pessoas uma corrida por nomes, por referências culturais não a serviço da história, mas simplesmente para mostrar o quão batuta o sujeito ali era... Não tinha nexo. E aí deu nisso: apareceu uma pancada de gibis pós-Watchmen em que eu só conseguia ver um reflexo do trabalho que fizemos. Foi um jeito um bocado distorcido de ter reconhecimento...





Você gostou do trabalho que Frank Miller fez com o Batman? Gostou do Cavaleiro das Trevas? Gostei do primeiro Cavaleiro das Trevas. Foi um trabalho muito decente. E gostei também do que Frank fez em Batman Ano Um. Mas não posso dizer que tenha gostado da seqüência do Cavaleiro das Trevas, que ele publicou anos depois. Me pareceu um trabalho apressado, lançado principalmente pelo dinheiro envolvido... Bem, é uma opinião. Não posso garantir que foi isso, claro. Eu não sei, na verdade... Mas não me interessou. O primeiro Cavaleiro das Trevas foi muito bom na época. Uma ótima história do Batman. Tenho certeza de que é melhor do que fiz em A Piada Mortal. Mas, humm... Ando muito distante dos super-heróis atualmente. Não posso dizer que tenho pensado no trabalho de Frank em Batman. Faz muito tempo...

O seu romance A Voz do Fogo. É algo que me dá um imenso orgulho, que me pertence e que trata de uma coisa absolutamente próxima a mim: Northampton. Como já disse, este é um lugar que abriga uma das partes mais importantes da história da Inglaterra. Coisas misteriosas e fascinantes aconteceram por aqui.

Você tem uma conexão muito forte com a cidade, não? Você já visitou os Estados Unidos... [interrompe] Hã... Sim, já fui e não gostei. A coisa é que saí poucas vezes daqui. Na verdade, saí poucas vezes da Inglaterra...

Eu sei. Por quê essa ligação tão forte com Northampton? Estou na varanda da minha casa em Northampton, neste exato momento. O lugar em que vivi toda a minha vida. É uma cidade pequena, no centro da Inglaterra, e que, de uma certa forma, é também um dos centros da atividade histórica deste país. Embora este seja um dos cantos mais escondidos, mais obscuros e negligenciados da Inglaterra, aqui reside uma quantidade enorme de história empilhada nas ruas, nas construções...

E isso está no livro... Sim. Com A Voz do Fogo fui capaz de explorar uma dúzia de episódios ocorridos aqui que estão imbricados no passado da cidade. O livro é o que tenho... Não, na verdade é o que tinha para dizer sobre Northampton. Recentemente, comecei a trabalhar em Jerusalém, que trata de coisas mais pessoais e íntimas de Northampton. Tudo é mais focado na história e nas vidas de pessoas comuns, nos alicerces em que elas foram compostas. Se este livro fosse escrito na América, ele provavelmente seria classificado como realismo mágico. Mas ele vai além. Há muito de, eu diria, realismo social, além dessas pitadas de mágica e coisas fantasmagóricas.

E Do Inferno? O trabalho foi elogiado, premiado. Teve uma pesquisa extensa... Do Inferno é um título que me pertence, que não perdi. É um trabalho magnífico. Eddie Campbell foi uma escolha maravilhosa. Ele é a única pessoa que poderia desenhar essa história. Eu simplesmente quis ver se era possível contar uma complexa ficção histórica que circunda um assassinato - no caso, os assassinatos de Jack, o Estripador. A idéia era deixar isso me levar aonde quer que fosse sem estabelecer limites além do fato de que a narrativa estaria contida em 16 capítulos e que alguns desses capítulos pudessem tomar 50 páginas. Eu simplesmente não sabia que se tornaria esse monstro de 600 páginas, o tamanho com que a série acabou. Acho que demonstramos, Eddie e eu, com Do Inferno, algo que me deixou muito orgulhoso. Mostramos que os quadrinhos são capazes de se aproximar o suficiente de qualquer coisa. Nós conseguimos conduzir uma história como essa, cheia de dimensões - política, histórica, humana, emocional -, e você vê que é capaz de manejar isso com sucesso, com naturalidade numa HQ. Eu não consigo imaginar qualquer coisa que não se possa levar a essa mídia. Do Inferno é provavelmente meu maior e mais sério trabalho até hoje. Jerusalém, em que estou trabalhando agora, será maior, mas sim, eu estou imensamente orgulhoso dessa obra. Do Inferno é grandiosa. Das centenas e centenas de quadrinhos que eu fiz, só quero ser associado com aqueles de que sou dono: Do Inferno, Liga Extraordinária, Lost Girls e algumas outras.

V de Vingança não está entre elas. Mas é um dos seus trabalhos mais conhecidos e elogiados. Tem toda essa história do filme que você já me explicou [confira a parteO Filme]. E quanto à obra em quadrinhos? O que resta dela hoje, em perspectiva? ... V de Vingança. Olha, estou tão enjoado dela, sabe? Acho que vou me repetir aqui... Foi um grande gibi e me diverti muito o fazendo na época. Mas então ele me foi roubado pela DC. O ano passado foi o limite, a gota d'água, com essa lambança, essa quantidade incrível de abusos cometidos pela divisão de filmes da Warner e pela divisão editorial da DC... Eu tenho um receio... Por melhor que V de Vingança tenha sido na época em que foi feita, por mais que nós tenhamos experimentado um novo jeito de contar uma história e que tenha sido a primeira HQ que me fez perceber o potencial dessa mídia, e ainda que seja um dos meus trabalhos favoritos, depois do que aconteceu no ano passado e depois desse filme medonho tenho medo de não poder mais olhar para V. Há uma porção de memórias terríveis conectadas... A questão é que já fiz trabalhos bons o suficiente para poder me dar o direito de não querer ter mais ligação com alguns títulos...

Monstro do Pântano é um caso parecido. Ainda que o personagem principal não tenha sido criado por você, foi nas páginas da revista que surgiu Constantine. E muita gente ainda considera a sua passagem pela série como uma das melhores fases dos quadrinhos de horror. Mas de novo, por mais que tenha sido bom enquanto estive encarregado do Monstro do Pântano, é o tipo de coisa que não importa mais, em que não penso mais. Nós tentamos fazer o melhor trabalho possível naquela época. Foi algo muito valente naqueles dias. Fomos capazes de falar sobre temas que não podiam ser tocados antes. Mas á aquilo. DC Comics. O personagem pertence à DC e dá lucro apenas à DC. Era pra isso que o personagem existia. As pessoas que comandam essa empresa não dão merda nenhuma para os quadrinhos como veículo. Eles não estão nem aí com as pessoas que produzem esses gibis. Não dão peteca pra quem lê essas revistas. Eles não se importam com as HQs. O único motivo de essas pessoas estarem envolvidas com quadrinhos é pra conseguir o tipo de dinheiro que cria as adaptações para o cinema. Não fosse o fato de Superman, Batman e Mulher-Maravilha serem propriedades no mínimo comerciáveis, a Warner Bros provavelmente teria transformado a DC Comics num estacionamento ou numa concessionária. As pessoas da DC sabem disso. Sabem que o único motivo de sua existência é lançar uma quantidade infindável de produtos medíocres na esperança de que um desses títulos possa fornecer material para algum filme. E isso mostra o tipo de desprezo que têm pelos quadrinhos... É por isso que não posso olhar para nenhum desses personagens sem enxergar essa rede de fios que suspendem por trás homens traídos e, geralmente, já mortos... Temo ter desenvolvido repulsa por esses personagens. Se jamais tiver que vê-los novamente, isso não vai me incomodar.

Fonte: Revista Trip


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