Superman - O Retorno - Crítica da Revista Veja
Na redação do Planeta Diário, Clark Kent descobre que Lois Lane está a bordo de um avião prestes a se incendiar na estratosfera. Mal há tempo de ver o "S" de Super-Homem aparecer sob a camisa que ele vai abrindo e o herói já está a alguns milhares de metros de altitude, salvando Lois da morte (e provocando, num estádio que vai servir de campo de pouso, emoções que os fãs de beisebol nunca sonhariam sentir). O momento dessa primeira transformação de Kent em Super-Homem não dura nem um segundo a mais ou a menos do que deveria durar; é calibrado à perfeição para ser icônico. Está aí, sem dúvida, o ponto em que o diretor Bryan Singer se supera: o dos tempos e cadências que regem um filme de ação que aspira a ser algo mais. No caso de Super-Homem - O Retorno (Superman Returns, Estados Unidos/Austrália, 2006), que estréia nesta sexta-feira no país, essas aspirações incluem não apenas ressuscitar o decano dos super-heróis (se possível, saindo da sombra do filme de 1978, que lançou Christopher Reeve no papel), mas fazer com que a platéia experimente um pouco do peso carregado por um homem que todos julgam ser um salvador. Está-se aqui menos no território de X-Men, o outro quadrinho que Singer verteu para o cinema, e mais no de A Última Tentação de Cristo - o da dúvida e revolta que, supõe-se, atingem os messias divididos por uma natureza meio humana e meio divina.
No argumento criado por Singer, depois de cinco anos, durante os quais foi ver de perto as ruínas de Krypton, seu planeta natal, o Super-Homem (o novato Brandon Routh) volta para uma Metrópolis mudada. Pior: para um mundo mudado, ainda mais violento e desnorteado do que o que ele deixara. Metrópolis, como se sabe, é Nova York, e Super-Homem - O Retorno incorpora obrigatoriamente o sentimento de caos que se seguiu ao 11 de Setembro, além do pesar pelo holocausto que sempre pontua o trabalho de Singer. Como o mundo do nazismo, esse para o qual Clark retorna é um mundo do qual a idéia de um deus parece ter se ausentado. Personificando o titubeante Clark Kent, o herói retoma seu emprego no Planeta Diário para pelo menos reencontrar Lois Lane (Kate Bosworth). Mas ela não só arrumou um filho (de suspeitíssimos 5 anos de idade) e um noivo, como vai receber o Prêmio Pulitzer, por um artigo intitulado "Por que o mundo não precisa do Super-Homem". Não há fúria no inferno que se compare à de uma mulher desprezada, e Lois não tem nenhuma palavra boa para dizer sobre o sujeito que, apesar de parecer tão especial, sumiu de sua vida como um canalha qualquer.
Com tanta coisa acontecendo, seria quase dispensável ter também um vilão. Mas, como o item é considerado de rigueur, Kevin Spacey, de cabeça raspada e com aquela enunciação fastidiosa, faz as honras como Lex Luthor. Como em tantas outras adaptações de quadrinhos - inclusive a mais sensacional delas, O Homem-Aranha -, é nesse flanco, o dos arquiinimigos, que o gênero mostra a sua fragilidade. Depois de quase duas décadas ininterruptas de entretenimento marcado pela ironia e pela paródia, hoje não há plano maligno que não pareça criação do Dr. Evil de Austin Powers. O de Super-Homem - O Retorno não é exceção: apesar de muita conversa sobre vingança e kryptonita - a única coisa que pode matar o Homem de Aço -, tudo o que Luthor quer é, ao fim e ao cabo, lançar-se em grande estilo no ramo imobiliário.
Para simplificar, então, pode-se dizer que Luthor representa o que há de mau nesse filão, e o Super-Homem, o que resta de interessante nele. Se um produtor tivesse coragem (e, dado o zelo dos fãs de quadrinhos, é, sim, preciso ter coragem) de riscar de um roteiro como esse tudo o que ele tem de obrigatório, o filme de Singer não teria de lidar com o entulho de planos pretensamente diabólicos e personagens que não têm o que fazer. (A lista é grande. Vai dos capangas de Luthor e de Kitty, sua namorada desmiolada, ao staff do Planeta Diário.) Aí então Super-Homem - O Retorno seria exatamente aquilo que o diretor quer fazer dele: uma história de amor complicada, em que os atos heróicos do personagem ao mesmo tempo atraem a mulher que ele ama e o afastam dela.
No filme de 1978, dirigido sem muita personalidade por Richard Donner, esse viés funcionava por causa de Christopher Reeve, um ator tão hábil que sabia ser ingênuo sem parecer boboca, e que teve a excelente iluminação de retratar o Super-Homem e seu alter ego Clark Kent como dois papéis desempenhados por um homem cuja verdadeira identidade não seria nenhuma dessas duas, mas uma terceira - que permanece misteriosa porque uma mulher superficial como Lois (ou como a platéia) não tem sensibilidade para enxergá-la. Em Super-Homem - O Retorno, a idéia funciona por razões mais objetivas: porque Singer entende o personagem, porque Routh tem muito do encanto (embora menos da ingenuidade) que Reeve tinha e porque as cenas de ação, tratadas com uma fineza rara no cinema, definem que tipo de homem o herói é - todo explosão e potência no calor da hora, todo cavalheirismo nos finalmentes. Richard White (James Marsden), o noivo de Lois Lane, é, para azar geral, um cara bacana, e também não lhe faltam iniciativa e virilidade. Mas não é difícil entender por que a repórter fica tão balançada com a volta do super-herói. Ao menos no inconsciente, ao escolher um parceiro as mulheres escolhem também passar o resto da vida se indagando se não abriram mão de um outro destino, ideal; Lois tem de lidar com o problema na prática, e não é à toa que ela aqui é tão mais tensa que em suas encarnações anteriores.
A pedra de toque do personagem comercializado em 1938 pelos rapazes Jerry Siegel e Joe Shuster sempre foi este poder simbólico: a idéia de que dentro dos Clark Kent do mundo, tão tímidos, desajeitados e míopes, existe em forma latente um herói pronto para despontar e arrebatar a todos. Mas se os Clark de verdade podem ao menos sonhar um dia tornar-se aquilo que imaginam, o herói, ao contrário, está fadado a ser sempre dois - o Clark Kent que Lois Lane acha insípido demais até para ser seu amigo e o Super-Homem por quem ela é apaixonada, mas que tem atribuições pesadas demais para poder corresponder a ela. E aí vai, de quebra, uma explicação razoável para o fato de que apenas os óculos quadrados e pretos usados por Clark bastem para impedir que Lois, sempre tão abelhuda, descubra quem ele realmente é: o verdadeiro disfarce não está na roupa, mas na insegurança que Clark afeta em relação à sua masculinidade. Assim é se lhe parece, diz Super-Homem - O Retorno, um filme inteligente e às vezes até tocante - com (e não de) um super-herói.
Fonte: Revista Veja
No argumento criado por Singer, depois de cinco anos, durante os quais foi ver de perto as ruínas de Krypton, seu planeta natal, o Super-Homem (o novato Brandon Routh) volta para uma Metrópolis mudada. Pior: para um mundo mudado, ainda mais violento e desnorteado do que o que ele deixara. Metrópolis, como se sabe, é Nova York, e Super-Homem - O Retorno incorpora obrigatoriamente o sentimento de caos que se seguiu ao 11 de Setembro, além do pesar pelo holocausto que sempre pontua o trabalho de Singer. Como o mundo do nazismo, esse para o qual Clark retorna é um mundo do qual a idéia de um deus parece ter se ausentado. Personificando o titubeante Clark Kent, o herói retoma seu emprego no Planeta Diário para pelo menos reencontrar Lois Lane (Kate Bosworth). Mas ela não só arrumou um filho (de suspeitíssimos 5 anos de idade) e um noivo, como vai receber o Prêmio Pulitzer, por um artigo intitulado "Por que o mundo não precisa do Super-Homem". Não há fúria no inferno que se compare à de uma mulher desprezada, e Lois não tem nenhuma palavra boa para dizer sobre o sujeito que, apesar de parecer tão especial, sumiu de sua vida como um canalha qualquer.
Com tanta coisa acontecendo, seria quase dispensável ter também um vilão. Mas, como o item é considerado de rigueur, Kevin Spacey, de cabeça raspada e com aquela enunciação fastidiosa, faz as honras como Lex Luthor. Como em tantas outras adaptações de quadrinhos - inclusive a mais sensacional delas, O Homem-Aranha -, é nesse flanco, o dos arquiinimigos, que o gênero mostra a sua fragilidade. Depois de quase duas décadas ininterruptas de entretenimento marcado pela ironia e pela paródia, hoje não há plano maligno que não pareça criação do Dr. Evil de Austin Powers. O de Super-Homem - O Retorno não é exceção: apesar de muita conversa sobre vingança e kryptonita - a única coisa que pode matar o Homem de Aço -, tudo o que Luthor quer é, ao fim e ao cabo, lançar-se em grande estilo no ramo imobiliário.
Para simplificar, então, pode-se dizer que Luthor representa o que há de mau nesse filão, e o Super-Homem, o que resta de interessante nele. Se um produtor tivesse coragem (e, dado o zelo dos fãs de quadrinhos, é, sim, preciso ter coragem) de riscar de um roteiro como esse tudo o que ele tem de obrigatório, o filme de Singer não teria de lidar com o entulho de planos pretensamente diabólicos e personagens que não têm o que fazer. (A lista é grande. Vai dos capangas de Luthor e de Kitty, sua namorada desmiolada, ao staff do Planeta Diário.) Aí então Super-Homem - O Retorno seria exatamente aquilo que o diretor quer fazer dele: uma história de amor complicada, em que os atos heróicos do personagem ao mesmo tempo atraem a mulher que ele ama e o afastam dela.
No filme de 1978, dirigido sem muita personalidade por Richard Donner, esse viés funcionava por causa de Christopher Reeve, um ator tão hábil que sabia ser ingênuo sem parecer boboca, e que teve a excelente iluminação de retratar o Super-Homem e seu alter ego Clark Kent como dois papéis desempenhados por um homem cuja verdadeira identidade não seria nenhuma dessas duas, mas uma terceira - que permanece misteriosa porque uma mulher superficial como Lois (ou como a platéia) não tem sensibilidade para enxergá-la. Em Super-Homem - O Retorno, a idéia funciona por razões mais objetivas: porque Singer entende o personagem, porque Routh tem muito do encanto (embora menos da ingenuidade) que Reeve tinha e porque as cenas de ação, tratadas com uma fineza rara no cinema, definem que tipo de homem o herói é - todo explosão e potência no calor da hora, todo cavalheirismo nos finalmentes. Richard White (James Marsden), o noivo de Lois Lane, é, para azar geral, um cara bacana, e também não lhe faltam iniciativa e virilidade. Mas não é difícil entender por que a repórter fica tão balançada com a volta do super-herói. Ao menos no inconsciente, ao escolher um parceiro as mulheres escolhem também passar o resto da vida se indagando se não abriram mão de um outro destino, ideal; Lois tem de lidar com o problema na prática, e não é à toa que ela aqui é tão mais tensa que em suas encarnações anteriores.
A pedra de toque do personagem comercializado em 1938 pelos rapazes Jerry Siegel e Joe Shuster sempre foi este poder simbólico: a idéia de que dentro dos Clark Kent do mundo, tão tímidos, desajeitados e míopes, existe em forma latente um herói pronto para despontar e arrebatar a todos. Mas se os Clark de verdade podem ao menos sonhar um dia tornar-se aquilo que imaginam, o herói, ao contrário, está fadado a ser sempre dois - o Clark Kent que Lois Lane acha insípido demais até para ser seu amigo e o Super-Homem por quem ela é apaixonada, mas que tem atribuições pesadas demais para poder corresponder a ela. E aí vai, de quebra, uma explicação razoável para o fato de que apenas os óculos quadrados e pretos usados por Clark bastem para impedir que Lois, sempre tão abelhuda, descubra quem ele realmente é: o verdadeiro disfarce não está na roupa, mas na insegurança que Clark afeta em relação à sua masculinidade. Assim é se lhe parece, diz Super-Homem - O Retorno, um filme inteligente e às vezes até tocante - com (e não de) um super-herói.
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