Entrevista Alan Moore - Parte 05
A última tentação de Moore: Lost Girls
Você está para lançar uma nova HQ, Lost Girls, um "imenso álbum pornográfico". O que é isso? [Ri] Bem, é um imenso álbum pornográfico... Basicamente, se apóia em algumas idéias que tive uns 20, 25 anos atrás, assim que comecei a militar no campo das HQs. Há um número grande de gêneros na literatura que são perfeitamente aceitáveis. Você tem ficção científica, histórias de detetive, de horror, e todas são aceitáveis. Como pouquíssimos de nós são detetives, exploradores espaciais ou zumbis andrajosos que voltaram da morte, você entende que são especialidades um bocado raras da experiência humana. [ri] Mesmo assim, cada uma delas mereceu um gênero todo especial. Agora, por outro lado, todos nós temos algum tipo de relacionamento com sexo e a sexualidade. Mesmo que o sujeito seja celibatário, ainda estamos definindo a coisa em termos sexuais. Então, me parece que os pensamentos sobre sexo, de uma forma ou de outra, são universais...
...mas carentes de um recorte de arte respeitável? Humm... O único gênero por aí que lida com o sexo é um troço sujo, pequeno e vergonhoso que é vendido às escondidas e que não obedece a nenhum padrão estético. Nunca houve uma tentativa séria de preencher as aventuras eróticas com algum tipo de história ou beleza, com algumas das coisas que você razoavelmente esperaria encontrar em outro tipo de romance.
Uma coisa que me intriga em relação ao seu problema com as adaptações para o cinema é que, apesar de ser um fervoroso opositor, você adapta personagens de literatura em seus quadrinhos. Lost Girls, Liga Extraordinária... O quanto de diferença há nesses casos? Sim, isso é verdade, mas a diferença é que eu não estou regurgitando uma versão coxa da história original. Quando eu digo que sou contra a adaptação de qualquer mídia por outra, o que estou dizendo é que não há muito sentido em fazê-lo... Isso pode funcionar, evidentemente. Existem filmes que são tão bons, às vezes melhores que o original. Mas são pouquíssimos e cada vez mais raros. Minha sensação, quando tomo algum personagem, como em Lost Girls, é que não estou fazendo uma versão em tirinhas de Alice no País das Maravilhas.
Mas qual é a diferença? O que você está fazendo, então? Não haveria sentido algum que eu fizesse uma adaptação do livro porque o autor, Lewis Carroll, fez uma criação em prosa absolutamente fabulosa em Alice no País das Maravilhas. O ponto é: não estou fazendo um filme de Alice. O que faço é pegar esses personagens para expandir suas vidas para além dos limites em que eles vivem nos romances. Isso é algo muito diferente. Não é o método com que Hollywood canibaliza outras culturas no afã de alimentar essa necessidade voraz de produzir filmes... E aí é aquilo: eles irão adaptar livros, HQs, séries de TV dos anos 60 que todo mundo adora e séries de TV dos anos 60 pelas quais ninguém morre de amores; vão adaptar filmes estrangeiros perfeitos, maravilhosos, para uma audiência que se recusa a ler legendas... Hollywood fará versões inferiores de seus filmes, propositadamente inferiores, para a audiência local. Eles reduzem tudo. Não vejo motivo desse tipo de adaptação existir, enquanto que, se você pega um personagem que teve toda sua extensão, suas características e propósitos definidos pelo autor, e o coloca num contexto diferente, ou em justaposição a outros personagens para ver o que acontece, existe uma significativa diferença.
Na média, os quadrinhos são muito bestas. Você e alguns poucos artistas alçaram as HQs mainstream a um status respeitável de critica. Qual o limite possível para a "arte seqüencial"? Eu acho que o melhor jeito de te responder isso é dizendo que neste momento, sim, eu continuarei a fazer a Liga Extraordinária, e que sim, eu continuo tendo absoluta paixão por todos os quadrinhos que são [legalmente] meus. Acompanho muito pouco as HQs de hoje. E agora estou me concentrando quase que totalmente em meu segundo romance. Porque sim, eu sempre terei uma imensa afeição pelo formato das HQs - como uma mídia, acho que é incrivelmente sofisticada e, em certo sentido, talvez seja o veículo mais antigo do mundo. Mas eu devo dizer que a literatura é o meu primeiro amor.
Curioso escutar isso. Evidente que a literatura atingiu um patamar de qualidade muito maior... Mas você é um escritor que, apesar de militar nos dois fronts, é conhecido por dar às HQs um verniz, um nível literário. Por que optar pela literatura agora? Eu acredito que a literatura é mais elegante. Como estava te dizendo antes, quando falei sobre os filmes em que não há outra recepção possível para o público a não ser no formato idealizado pelo diretor. Você não pode imaginar o jeito, os maneirismos, a imagem física dos personagens, ou como eles vão soar. Eles terão a cara do ator fulano. Nos quadrinhos, embora você possa acrescentar muito, você ainda está sendo ajudado pelos desenhos. Não que haja algo de errado com isso tudo, apenas me parece mais elegante ser capaz de conjurar um mundo próprio e todas as pessoas que existem nele usando somente todas as 26 letras do alfabeto em diferentes combinações. Isso me parece uma tecnologia, um processo incrivelmente elegante.
Como está o livro? Estou no primeiro terço, o que dá mais ou menos umas 250, 300 páginas. Deverá ser um livro bem grande. Meu primeiro romance, A Voz do Fogo, era sobre Northampton. Este livro será quase que todo sobre uma área ainda menor, um pedaço bem pequeno da cidade em que cresci. O livro se chama Jerusalém. Deverá ter uns 35 capítulos. Estou no 12o. Levei um ano para chegar nisso. Sem pressa. Ainda nem tenho uma editora. Quero aproveitar o prazer de escrever um romance exatamente como eu quero, sem ter que pensar no público, no editor, em ninguém. Estou pensando apenas em mim e no material que quero botar no papel. Sou a última pessoa que poderia julgá-lo, mas acredito que é a melhor e mais ambiciosa coisa que já fiz. Mas levará mais uns dois anos antes que as pessoas possam confirmar isso.
Cansou das limitações das HQs? Humm... Eu não atingi os limites dos quadrinhos, mas posso te dizer que produzi algo em torno de 24, 25 álbuns - álbuns de capa dura - nos quais apliquei uma boa dose de experimentação. A coisa é que, no momento, eu ainda tenho a Liga Extraordinária como veículo para meus quadrinhos. Mas estou pendendo para outras áreas que quero explorar. Eu deverei fazer algumas novas performances de arte, talvez mais alguns CDs... Sabe, já faz 25 anos que eu tenho sido o menino-maravilha, o garoto-propaganda da indústria dos quadrinhos. E acho que hoje as pessoas já aceitam a idéia de que os gibis são uma mídia válida. Eles não precisam mais de mim para continuar a proclamar isso. De algum jeito, a coisa já está estabelecida. Estou, de certa forma, deixando as HQs para abraçar outras áreas...
Como começou a escrever quadrinhos? Há uma história de que foi expulso da escola por vender drogas... Certo. Vamos lá. Eu fui expulso do colégio quando tinha 17 anos. Nessa época, eu já estava escrevendo e desenhando. Nada de muito importante. Participava de uma espécie de coletivo anarquista de arte, o Laboratório de Artes de Northampton. Isso tudo vinha da explosão hippie dos anos 60, e, como parte disso, eu vendia LSD para alguns estudantes da minha escola primária. Fui pego. Quando me expulsaram, isso se tornou uma mancha muito grave nos meus registros escolares. A partir disso, tornou-se impossível que eu fosse para uma universidade ou que conseguisse algum outro tipo de educação porque o diretor deixou claro que eu não seria aceito em lugar algum.
Ele acabou com qualquer chance de formação... Não só. Ele também deixou claro que quaisquer empregadores que exigissem referência - que eram as melhores vagas disponíveis, o restante era a raspa do tacho - seriam notificados da minha expulsão da escola. Basicamente, eu não seria capaz de conseguir nenhum trabalho decente e não poderia continuar a minha educação. Ele, o diretor, estava mais ou menos tentando acabar com a minha carreira. E eu só tinha 17 anos. Isso foi um tanto cruel pra mim. Então, dos 17 aos 24 anos, eu arrumei uma série de empregos gradativamente mais confortáveis - quer dizer, comecei fazendo coisas horríveis, como trabalhar num curtume, com pele de ovelhas e galões de sangue, água fria e toda a sorte de coisas desagradáveis. Fui faxineiro, lavei banheiros no Grand Hotel de Northampton por algum tempo. Mas depois consegui uma série de ocupações para empreiteiros e em companhias de fornecimento de gás e tubulações. Trabalhei nos escritórios dessas empresas, e, se não era um grande jeito de se levar a vida, era pelo menos seguro, regular.
E como foi que se decidiu pelos gibis? Como o nascimento da sua filha afetou nisso? Então, um pouco antes disso, percebi que adoraria deixar o meu emprego por uma tentativa genuína de tocar a vida desse jeito, nas HQs. Quando já estava decidido, descobri que minha esposa, Phyllis, estava grávida da minha primeira filha, Leah. Aí veio o dilema: porque soa um bocado insano desistir de uma fonte de renda confortável quando há um bebê a caminho. Por outro lado, eu matutei que assim que o bebê nascesse, e eu fosse responsável por alimentá-lo, não teria jamais a coragem para me demitir. Eu me antecipei a isso. Meu grande amigo Steve Moore - não temos nenhum parentesco apesar do sobrenome -, que escrevia quadrinhos desde os 16 anos, me ensinou de verdade como se fazia um layout, um roteiro de HQ. Ele corrigiu minhas primeiras tentativas e comecei a enviar esse material para uma série de revistas britânicas que existiam naquela época, como 2000 AD e Doctor Who Weekly. Elas aceitaram e bolei uma porção de pequenas histórias para várias publicações. Com o tempo, passaram a confiar a mim séries maiores. Eu lhes mostrei minhas teorias e meus primeiros tratamentos para o que sentia ser realmente capaz de fazer nesse meio. Foi nessa época que criei V de Vingança, Marvelman, Halo Jones e as outras séries que publiquei nos anos 80.
E o mercado norte-americano? Como a DC te laçou? Do jeito de sempre. Uma vez que mostrei o que era capaz de fazer nos gibis britânicos, os americanos começaram a prestar atenção. Me ofereceram trabalho nas HQs deles, que eram coloridas, maiores... Você tinha mais espaço para contar uma história - e é claro que você era muito melhor pago. Mas não era só por isso. O fator principal é que é uma audiência muito maior e isso leva a melhores patamares de produção. Mas foi basicamente assim...
Fonte: Revista Trip
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